O Direito da Sucessões regula a transferência do patrimônio de alguém, depois de sua morte, a herdeiro legítimo e/ou testamentário.

Ocorre que os bens deixados podem conter gravames gerando controvérsias que pode levar o herdeiro a interpor Ação de Cancelamento de Gravames  em razão de restrição ao seu direito de propriedade.

Para interpretação jurídica dessa situação é chamado o artigo 1.911 do Código Civil para definir se a aposição da cláusula de impenhorabilidade e/ou incomunicabilidade em ato de liberalidade importa automaticamente, ou não, na cláusula de inalienabilidade 

O caput do referido artigo assim estabelece:

Art. 1911.

A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.

O texto desse artigo conduz ao entendimento de que:

  1. uma vez aposto o gravame da inalienabilidade, pressupõe-se, automaticamente, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade;
  2. há possibilidade de imposição autônoma das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, a critério do doador/instituidor; 
  3. a instituição autônoma da impenhorabilidade, por si só, não pressupõe a incomunicabilidade e vice-versa, e;
  4. a inserção exclusiva da proibição de não penhorar e/ou não comunicar não gera a presunção do ônus da inalienabilidade. (STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.155.547 – MG (2009/0171881-7)

O Código Civil, garante ao proprietário no art. 1.228 que ele detém os poderes de usar, fruir, dispor e reivindicar o seu bem. Em sendo assim, a regra geral é que o proprietário tenha a liberdade de decisão quanto à seu patrimônio, seja onerosa ou gratuitamente. 

1. CLÁUSULAS RESTRITIVAS

Já as cláusulas restritivas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, previstas no art. 1.848 do Código Civil, representam situações excepcionais que exigem justa causa do autor da herança, para serem declaradas, se alcançarem os bens da legítima.

A cláusula de inalienabilidade, que acarreta também a impenhorabilidade e a incomunicabilidade (art. 1.911 CC), representa uma restrição que nasce da vontade do autor para proteção do donatário/herdeiro/legatário, evitando a dissipação do bem e garantindo ao beneficiário um mínimo patrimonial.

Entretanto, para que as cláusulas restritivas sejam validamente impostas elas devem respeitar dois requisitos: a) que seja um ato de liberalidade (doação ou testamento) e b) que não incida sobre a legítima dos herdeiros necessários, a não ser que haja justa causa devidamente consignada em testamento (art. 1.848, CC).

Ainda há de ser destacado o fato de que essas cláusulas restritivas não podem ultrapassar a vida do donatário/herdeiro/legatário, uma vez que ocorrendo a morte do beneficiário, o bem volta a ser livre.

2. A SUB-ROGAÇÃO – ART. 1.848, § 2o e ART. 1.911, P. ÚNICO

Em que pese a disposição de última vontade de inalienabilidade do bem, o Código Civil permite expressamente que esse bem inalienável seja vendido e, com o produto dessa venda, seja adquirido outro bem, mantendo nessa nova aquisição, a cláusula de inalienabilidade.

Entretanto, essa alienação, depende da propositura de uma ação judicial, em que será demonstrará ao juízo a ocorrência de uma fundada razão de conveniência e oportunidade dessa operação de substituição.

Além disso, para que a vontade do autor seja preservada, é comum na doutrina e na jurisprudência a exigência de que o bem sub-rogado seja de valor ou superior valor, mesmo não constando tal exigência expressamente na lei.

3. O CANCELAMENTO DAS RESTRIÇÕES

Ao tratar das cláusulas restritivas, diferentemente do que ocorre com a possiblidade de sub-rogação, não previu o Código Civil, expressamente, a possibilidade de que possa haver o cancelamento das restrições.

A jurisprudência nacional, tem relativizado essas cláusulas restritivas, admitindo, em casos pontuais, a dispensa judicial desses gravames. Por exemplo, a dispensa da cláusula de inalienabilidade repousa na função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF/88). Para esses casos deve ser provado que a impossibilidade de alienação do bem representa um prejuízo evidente ao beneficiário, devendo por isso ser superada e que a vontade do instituidor, caso estivesse ainda vivo, anuiria com a alienação, sendo esta a pedra de toque.

Deve ser salientado, que o cancelamento, puro e simples, da cláusula de inalienabilidade apenas se opera em situação excepcional e suficiente que suplante o regramento geral e recomende a alienação.

4. O STJ

A jurisprudência do STJ admite, excepcionalmente, o cancelamento das cláusulas restritivas, quando demonstrada, no caso concreto, a vantagem ou a necessidade premente de tal medida.

Desde o Código Civil de 1916 a jurisprudência seguia o entendimento abaixo colacionado:

PRESTAÇÃO DE CONTAS PROPOSTA CONTRA A ADMINISTRADORA DE BEM IMÓVEL, A QUAL, PORÉM, SE OPÕE AO PEDIDO MEDIANTE A ASSERTIVA DE CELEBRAÇÃO DE UM NEGÓCIO JURÍDICO EM QUE SEU MARIDO FIGUROU COMO COMPROMISSÁRIO-COMPRADOR. TRANSAÇÃO EFETUADA QUANDO VIGENTE A CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.676 DO CÓDIGO CIVIL. COISA JULGADA. MOTIVOS DA SENTENÇA. QUESTÃO PREJUDICIAL.

– Segundo já decidiu a Quarta Turma do STJ, a regra restritiva à propriedade inscrita no art. 1.676 do Código Civil deve ser interpretada com temperamento, pois a sua finalidade foi a de preservar o patrimônio a que se dirige, para assegurar à entidade familiar, sobretudo aos pósteros, uma base econômica e financeira segura e duradoura. Hipótese em que a transação se fez de irmão a irmão há muitos anos, não negada pelos interessados, com a quitação integral do preço, sendo falecidos os promitentes-vendedores, de molde a dar ensejo ao cancelamento, no Cartório Imobiliário, dos gravames da inalienabilidade e da impenhorabilidade. […]

 (REsp 89.792/MG, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 18/04/2000, DJ 21/08/2000, p. 135)

Hoje, o Código Civil de 2002, assim tem seguido:

CIVIL. BEM. CLÁUSULA DE INALIENABILDIADE. PENHORA. IMPOSSIBILDADE.

1 – Nos termos do art. 1.676 do Código Civil de 1916 a cláusula de inalienabilidade, afora as exceções legais (desapropriação e débitos de imposto do próprio imóvel), não pode ser afastada, enquanto vivo estiver o donatário, o que impossibilita possa recair penhora sobre o bem.

2 – A jurisprudência tem admitido a quebra da inalienabilidade, em outras hipóteses excepcionais, mas apenas em prol dos próprios beneficiários da cláusula.

3 – Recurso especial não conhecido.

(REsp 571.108/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 28/10/2008, DJe 17/11/2008)

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. PEDIDO DE CANCELAMENTO.

1 – Pedido de cancelamento de cláusula de inalienabilidade incidente sobre imóvel recebido pelo recorrente na condição de herdeiro.

2 – Necessidade de interpretação da regra do art. 1576 do CC/16 com ressalvas, devendo ser admitido o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus legítimos interesses.

3 – Doutrina e jurisprudência acerca do tema.

4 – Recurso especial provido por maioria, vencida a relatora.

(REsp 1422946/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 05/02/2015)

APELAÇÃO CÍVEL. SUB-ROGAÇÃO DE INALIENABILIDADE DE IMÓVEL. VENDA. AUTORIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. Ao tempo do disposto no art. 1.676 do antigo Código Civil, a jurisprudência sempre admitiu temperamento, admitindo em circunstâncias excepcionais e para evitar prejuízos aos proprietários, a venda do bem vinculada à aquisição de outro, com sub-rogação. Atualmente o bem gravado com cláusula de inalienabilidade pode ser vendido para aquisição de outro, com sub-rogação do gravame (art. 1.911, parágrafo único). No caso, está demonstrada a situação precária do imóvel que acarreta prejuízos aos proprietários que tiveram declarada a inalienabilidade do bem por decisão judicial. Possibilidade de venda vinculada à aquisição de outro imóvel, com sub-rogação da inalienabilidade. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70028928893, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 23/02/2011)

APELAÇÃO. CANCELAMENTO DE CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE INSTITUÍDAS SOBRE HERANÇA. CABIMENTO NO CASO CONCRETO. Cabível o cancelamento das cláusulas restritivas instituídas por testamento pela mãe do autor, falecida, conforme moderno entendimento sedimentado no atual Código Civil, e que já vinha preconizado na jurisprudência e doutrina. (…) Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70023782808, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 22/11/2012)

APELAÇÃO. PEDIDO DE CANCELAMENTO DE GRAVAMES. CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. Possibilidade de retirada dos gravames em atenção ao princípio da função social da propriedade. A leitura da legislação infraconstitucional deve ser realizada sob a ótica dos valores fundamentais contidos na Constituição Federal. Não mais se justifica a perpetuação da vontade do titular do patrimônio para além de sua vida quando impede a plena fruição da propriedade. DERAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70077261139, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 28/06/2018)

Mesmo atualmente, os Tribunais exigem que haja no processo provas e elementos que configurem justa causa ao cancelamento do gravame.

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO DE IMÓVEIS. AÇÃO DE CANCELAMENTO DE CLÁUSULAS RESTRITIVAS NA MATRÍCULA DE IMÓVEL. CANCELAMENTO DE CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. INVIABILIDADE NO CASO CONCRETO. É entendimento corrente na doutrina e jurisprudência que a indisponibilidade gravada sobre bens imóveis não é absoluta, havendo possibilidade da relativização quando se tornarem óbice à própria fruição da coisa pelo proprietário. Atende-se, com essa exegese, a função social da propriedade. Entretanto, no caso inexistem elementos que configurem justa causa ao cancelamento do gravame. RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70069779361, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 25/08/2016)

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO DE IMÓVEIS. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO QUE MANTEVE GRAVAMES DE INALIENABILIDADE. NÃO DEMONSTRADA A EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O CANCELAMENTO DAS RESTRIÇÕES. ÔNUS PROBATÓRIO NÃO SATISFEITO PELA PARTE REQUERENTE. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70060522687, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Renato Alves da Silva, Julgado em 11/12/2014)

Conforme já ressaltado, deve o beneficiário demonstrar “justa causa”, a ser apreciada pelo juiz na propositura de uma ação pleiteando o cancelamento do gravame e, subsidiariamente, caso não atendido esse pedido principal, uma sub-rogação em outro imóvel a ser adquirido com o produto da venda.

Fatima Garcia

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